Escrito por José Maria e Silva
| 07 Setembro 2012
Artigos -
Governo do PT
O
Brasil das Olimpíadas segue as diretrizes do Ministério da Educação e
trata os negros como seres dançantes e gregários, destituídos de razão
pelos feitores de almas.
Antes
mesmo de pisar em solo inglês para disputar as Olimpíadas de 2012, o
Brasil já vinha de uma queda de braço com o Reino Unido. Trata-se de uma
disputa econômica para ver quem ocupa o sexto lugar da economia
mundial. A princípio, a vitória é do Brasil. Com um PIB (Produto Interno
Bruto) de 2,45 trilhões de dólares em 2011, o Brasil havia ultrapassado
o Reino Unido, tornando-se a sexta maior economia do mundo, atrás
apenas dos Estados Unidos, China, Japão, Alemanha e França. Todavia, com
a desvalorização do real frente ao dólar, ocorrida nos últimos meses, o
PIB brasileiro deve cair para o patamar de 2,34 trilhões de dólares,
levando o Reino Unido a recuperar a sexta posição, enquanto o Brasil
voltará a ser a sétima economia mundial, ainda assim, à frente da
Itália, Rússia e Canadá.
Em
outras palavras, o Brasil não é mais o longínquo País de 1936, do qual o
escritor Stefan Zweig (1881-1942) se despediu, ao cabo de sua primeira
visita, pensando: “Percebi que havia lançado um olhar para o futuro do
mundo”. Nosso futuro já chegou.
Talvez
não saibamos aproveitá-lo. Antes daquele elogio do escritor austríaco, o
Conde Afonso Celso (1860-1938), enumerando, em 1900, as grandezas que o
levavam a ufanar-se do Brasil, indagava a respeito do País: “É verdade
que a grandeza não deriva da simples posse de dons valiosos, mas do seu
sábio aproveitamento. Por que, porém, deixaremos de pôr em ação os
nossos prodigiosos recursos?”. Essa pergunta reboa até hoje nos ouvidos
da nação, que, a despeito de estar entre as maiores economias do mundo,
ainda se vê como a pátria da esperança e não das realizações.
O
brasileiro nunca percebeu o Brasil como obra sua e, sim, como dádiva de
Deus. Por isso, a despeito de ser a sexta ou sétima economia do mundo, o
gigante continua deitado em berço esplêndido, comodamente adaptado ao
olhar estrangeiro, que sempre viu o País como uma exuberante natureza
morta, destituída de pessoas à altura da história. Como confessa Stefan
Zweig: “Imaginava que o Brasil fosse uma república qualquer das da
América do Sul, que não distinguimos bem umas das outras, com clima
quente, insalubre, com condições políticas de intranquilidade e finanças
arruinadas, mal administrada e só parcialmente civilizada nas cidades
marítimas, mas com bela paisagem e com muitas possibilidades não
aproveitadas – país, portanto, para emigrados ou colonos e, de modo
nenhum, país do qual se pudesse esperar estímulo para o espírito”.
A fúria machadiana
E
esse mal não é novo. Já incomodava o “Escritor Nacional” (como diria o
personagem Donga Novais do novelário de Autran Dourado), a propósito de
quem a escritora Nélida Piñon cinzelou a máxima: “Se Machado de Assis
existiu, então o Brasil é possível”. Escrevendo semanalmente na Gazeta de Notícias,
do Rio de Janeiro, entre 24 de abril de 1892 e 11 de novembro de 1900, o
criador do alienista Simão Bacamarte dedicou uma de suas crônicas a
repudiar o viciado olhar estrangeiro que só via no Brasil a paisagem
natural, desprezando completamente o povo que habitava essas paragens,
como se não fora digno de constar nem mesmo no rodapé da história.
Em
20 de agosto de 1893, a propósito de um telegrama de Sarah Bernhardt
(1844-1923), em que a atriz parisiense desmentia os conceitos a respeito
do Brasil que um jornal argentino lhe atribuíra, Machado de Assis
(1839-1908) discorre sobre essa espécie de síndrome do Brasil telúrico,
sempre mais próximo da natureza do que da cultura. Para desculpar-se com
o Brasil, Sarah Bernhardt havia empregado a expressão “pays féerique”
(“país feérico”), razão da crítica de Machado: “Uma das minhas
convicções (e tenho poucas) era esta: se algum dia Sarah escrever a
nosso respeito, não empregará a velha chapa de todos os viajantes que
por aqui passam: ce pays féerique. E tu, amiga minha, tu arrancas-me sem piedade esta ilusão do meu outono”.
Machado
de Assis é sarcástico: “O meu sentimento nativista, ou como quer que
lhe chamem, – patriotismo é mais vasto, – sempre se doeu desta adoração
da natureza. Raro falam de nós mesmos; alguns mal, poucos bem. No que
todos estão de acordo, é no pays feérique. Pareceu-me sempre um
modo de pisar o homem e as suas obras. Quando me louvam a casaca,
louvam-me antes a mim que ao alfaiate. Ao menos, é o sentimento com que
fico; a casaca é minha; se não a fiz, mandei fazê-la. Mas eu não fiz,
nem mandei fazer o céu e as montanhas, as matas e os rios. Já os achei
prontos”.
O
escritor lembra, nesta crônica, que há muitos anos havia ciceroneado um
estrangeiro no Rio e que este, numa noite em que falaram da cidade e sua
história, mostrou desejo de conhecer uma velha construção: “Citei-lhe
várias; entre elas a igreja do Castelo e seus altares. Ajustamos que no
dia seguinte iria buscá-lo para subir o morro do Castelo. Era uma bela
manhã, não sei se de inverno ou primavera. Subimos; eu, para dispor-lhe o
espírito, ia-lhe pintando o tempo que por aquela mesma ladeira passavam
os padres jesuítas, a cidade pequena, os costumes toscos, a devoção
grande e sincera”.
Mas
a decepção de sempre aguardava Machado: “Chegamos ao alto, a igreja
estava aberta e entramos. Sei que não são ruínas de Atenas; mas cada um
mostra o que possui. O viajante entrou, deu uma volta, saiu e foi
postar-se junto à muralha, fitando o mar, o céu e as montanhas, e, ao
cabo de cinco minutos: ‘Que natureza que vocês têm!’ (...) A admiração
do nosso hóspede excluía qualquer ideia da ação humana. Não me perguntou
pela fundação das fortalezas, nem pelos nomes dos navios que estavam
ancorados. Foi só a natureza”.
Enegrecimento à forçaSe
Machado de Assis encarnasse uma de suas criaturas, o defunto-autor Brás
Cubas, e se fizesse cronista póstumo deste Brasil da Copa e das
Olimpíadas, haveria de notar que as coisas pioraram ainda mais e que já
não é apenas a geografia do País que se conforma em ser cartão-postal –
hoje, é a própria alma da nação que se entrega feito natureza morta.
Como no verso do poeta e crítico piauiense Mário Faustino (1930-1962) –
“o olhar recebe a forma e esquece a essência” –, o brasileiro é
convocado a encarnar em sua própria alma a aparência que o mundo formou
dele: um ser feito só de sentidos, em que o instinto é maior do que a
razão.
É
o que se percebe, por exemplo, no clipe com a canção-tema das
Olimpíadas, dirigido por Estevão Ciavatta, da Pindorama Filmes, e
lançado em agosto pela Prefeitura do Rio de Janeiro. O clipe reforça
esse Brasil para inglês ver, expresso pela alma carioca no que ela ter
de pior – a absorção, em si mesma, do clima tórrido e insalubre, palco
da terrível febre amarela, no passado, e da dengue, no presente, como se
essas enfermidades do corpo plasmassem o próprio espírito da gente
trêfega, que, de modo bisonho e malemolente, desfila por esse vídeo que
vai mostrar ao mundo a imagem do palco oficial das Olimpíadas de 2016.
Composta por Arlindo Cruz, Rogê e Arlindo Neto e produzida por Alexandre Kassin, a música-tema Os Grandes Deuses do Olimpo Visitam o Rio de Janeiro
é interpretada por Diogo Nogueira, Mart’nália, Mr. Catra, Thalma de
Freitas, Zeca Pagodinho, Ed Motta e pelo próprio Arlindo Cruz. Além dos
intérpretes, ela reúne vários músicos, como Buchecha, Fernanda Abreu,
Fundo de Quintal, Jorge Aragão, Pedro Luís, Roberta Sá, Ronaldo Bastos,
Sandra de Sá, Toni Garrido, Zélia Duncan e as Velhas Guardas do Império
Serrano e da Vila Isabel. No clipe, aparece até mesmo a escritora Nélida
Piñon, fazendo o papel da deusa Atena, em meio a outros artistas, como
Fernanda Montenegro e Rodrigo Santoro, que também encarnam personagens
mitológicas. Mas a música nada tem a ver com o corpo atlético de Apolo.
Ela exalta o corpo relaxado de Baco: “Ficaram na roda de samba até
clarear / ficaram até de perna bamba de tanto sambar”.
Os
deuses do Olimpo são praticamente os únicos brancos do clipe. A inclusão
do negro no imaginário visual do país está sendo feita à custa da
exclusão do branco – que, no entanto, representa 47,7% do total de
brasileiros, segundo dados do IBGE. Os negros propriamente ditos são
apenas 7,6%. Mas como o governo petista – cavalo de santo do racismo de
laboratório produzido pela academia – está empenhado em fomentar uma
guerra racial no país, os negros passaram a ser chamados oficialmente de
“pretos” (termo que até outro dia era amaldiçoado pela ditadura do
politicamente correto) e, somados aos 43,1% de pardos (que foram
enegrecidos à força), formam um contingente de 50,7% de negros
estatísticos. Obviamente, essa população negra só existe na mente pueril
das autoridades, teleguiada pela insanidade moral dos intelectuais
universitários.
Eugenia às avessasO
clipe das Olimpíadas de 2016 reduz os brasileiros ao perfil simiesco de
exportação, em que as gentes dos trópicos são sempre apresentadas como
não tendo cérebro, feitas exclusivamente para rebolar no samba e jogar
bola. E, como sempre, o negro é convocado a fazer esse papel abjeto.
Seguindo a política racialista iniciada pelo governo Fernando Henrique e
transformada em eugenia às avessas pelo governo Lula, o clipe faz do
Brasil um país exclusivamente de negros. E o que é mais grave: uma vez
que o País é uma nação de negros, a Prefeitura do Rio entendeu que é
também uma nação de bola, pandeiro e cachaça. Só faltou explorar a
indefectível imagem das mulatas seminuas esfregando as calipígias formas
no rosto louro de algum estrangeiro.
Nos
últimos anos, especialmente depois da ascensão de Lula ao poder, o
símbolo por excelência do Brasil passou a ser o negrinho de periferia
jogando bola nas ruas, utilizado exaustivamente em comerciais de TV.
Essa imagem, confesso, me dá asco duplamente: primeiro, por vilipendiar o
negro, circunscrito a corpo e sentido, sem cérebro; segundo, por
conseguir esconder o verdadeiro e óbvio racismo que está por trás dessa
redução do negro a uma espécie de fenômeno bruto da natureza, incapaz de
se relacionar com elementos nobres da cultura, como um livro, um
violino, uma aquarela.
É
claro que jogar bola e dançar capoeira não avilta ninguém, mas fazer
dessas atividades a expressão por excelência da cultura negra é, sem
dúvida, alijar o negro do universo intelectual que produziu o teatro de
Shakespeare, as sinfonias de Beethoven, a física de Einstein.
Mas, no fundo, é justamente isso o que faz o Ministério da Educação no documento Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais,
publicado em 2006, na gestão do ex-ministro Fernando Haddad, atual
candidato a prefeito de São Paulo. Citando o jornalista e sociólogo
Muniz Sodré, professor titular da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, o documento do MEC enfatiza textualmente: “Na cultura negra o
corpo é fundamental”. Só na cultura negra? – cabe a pergunta. Um povo
que não considerasse o corpo como fundamental estaria condenado ao
suicídio coletivo.
Toda
cultura zela pelo corpo com sua melhor tecnologia, sejam as raízes
cultivadas pela tradição, seja o bisturi adestrado na ciência. Até a
cultura judaico-cristã, acusada de vilipendiar o corpo com jejuns e
martírios, foi uma precursora da profilaxia, como se vê nas leis de
Moisés.
Mas,
obviamente, o MEC não está falando da dimensão simplesmente física e
médica do corpo. Fala de um corpo que é quase um cosmos em si mesmo. O
documento parte de uma concepção demencial do negro, como se ele não
fosse um brasileiro como os outros e tivesse acabado de aportar no
Brasil do século XXI proveniente da Angola do século XVI. É o que fica
claro no restante do texto do MEC: “Na cultura negra o corpo é
fundamental. Sobre o corpo se assenta toda uma rede de sentidos e
significados. Esse não é apartado do todo, pertence ao cosmos, faz parte
do ecossistema: o corpo integra-se ao simbolismo coletivo na forma de
gestos, posturas, direções do olhar, mas também de signos e inflexões
microcorporais, que apontam para outras formas perceptivas”.
Negro como naturezaNão
há limite para a demência do MEC e das universidades nas orientações
que fornecem à escola sobre o modo de tratar a cultura negra. Depois de
afirmar que “o corpo é a representação concreta do território em
movimento” (uma frase digna de hospício), o documento do MEC sustenta:
“Ao contrário de uma percepção de mundo na qual a alma é onde reside a
força e a possibilidade de continuidade, para uma cultura negra a força
está no corpo, não existe essa ideia de uma força interior alavancada
pela ação da fé. Toda possibilidade encontra-se no corpo potente que
procura suas mediações nas relações que constitui no cosmos, daí o
compartilhamento como práxis ser uma questão fundamental para se
entender a dinâmica de uma cultura negra no Ocidente”.
Releiam
esta absurda frase: “Para uma cultura negra a força está no corpo, não
existe essa ideia de uma força interior alavancada pela ação da fé”.
Esse documento do MEC fere frontalmente a Constituição ao querer impedir
os negros brasileiros – majoritariamente cristãos – de exercer
livremente sua crença. E mais do que ofender a fé do negro, o MEC –
neste texto vil e moralmente criminoso – vilipendia a própria humanidade
do negro ao negar-lhe a alma, o espírito, a razão, deixando-lhe
tão-somente o corpo, como faziam os traficantes de escravos. Estarrece
saber que esse documento oficial do MEC foi escrito por cinco mulheres –
vítimas potenciais de toda cultura centrada na força física. A mulher
só tem lugar na civilização, onde impera o cérebro; onde manda o corpo,
ela vira repasto do macho, como ocorre entre a maioria dos animais.
Mas
o MEC não se contém em suas orientações sobre a cultura negra na escola
e chega a reduzir o negro a um mero elemento da natureza. Eis o que diz
o documento: “Todos trocam algo entre si, homens, mulheres, árvores,
pedras, conchas. Sem a partilha, não há existência possível. Faz-se
necessário pensar que a cultura negra não está marcada por uma
necessidade de conversão. Existe um sentido de agregação que não gira em
torno de uma verdade única”. Após esse ataque nada sutil ao
cristianismo, o MEC regurgita outras bobagens sobre as “comunidades de
matriz africana” (isso existe no Brasil?) para concluir: “Uma visão de
mundo negra implica a possibilidade de abertura para o mundo, para a
vida e principalmente para o outro. Por exemplo, em uma ‘roda de
capoeira’, todos que compartilham os códigos são aceitos, desde que se
coloquem como parceiros(as) e respeitem a hierarquia”.
Pensamento mágico do MECPara
essa abominável pedagogia do MEC, herdeira da nefasta autoajuda
marxista de Paulo Freire, o negro não é um brasileiro como os demais:
cristão, falante do português, eivado dos mesmos sonhos da gente comum,
que quer estudar, trabalhar, constituir família, criar filhos, vencer na
vida. Para os lunáticos do MEC, o negro é um ser à parte, prisioneiro
da materialidade do seu próprio corpo, que se agrega à natureza como um
elemento indistinto dela. O MEC está tratando o negro como sempre tratou
o índio: arranca-lhe a alma humana, legada pela civilização, e o atira
na paisagem de uma cultura telúrica – em vez de ser sujeito da natureza,
o negro se torna tão objeto dela quanto os bichos, as pedras, as
plantas. Se isso não for racismo, não sei o que seja.
Para
completar, o documento do MEC chega a flertar com o pensamento mágico,
que vê na cultura do negro brasileiro uma circularidade ancestral. Eis o
que diz o texto, sentenciosamente: “E aqui vale uma pequena abordagem
relativa à circularidade. Para a cultura negra (no singular e no
plural), o círculo, a roda, a circularidade é fundamento, a exemplo das
rodas de capoeira, de samba e de outras manifestações culturais
afro-brasileiras. Em roda, pressupõe-se que os saberes circulam, que a
hierarquia transita e que a visibilidade não se cristaliza. O fluxo, o
movimento é invocado, e assim saberes compartilhados podem constituir
novos sentidos e significados, e pertencem a todos e todas elas”. Alguém
consegue imaginar cientistas e matemáticos movimentando-se em rodas de
capoeira para formular teoremas, descobrir o antibiótico, inventar o
avião? Pensar é concentrar-se. Esse negro gregário, plástico,
permanentemente aberto ao outro que o MEC inventa não é capaz de criar
civilização – é objeto e não sujeito de sua própria cultura.
E
aí voltamos ao clipe das Olimpíadas de 2016, da Prefeitura do Rio, que
segue integralmente as diretrizes do MEC e das universidades relativas à
cultura negra. O clipe mostra um Dionísio caindo de bêbado nas ruas
(numa infeliz referência a Baco, que é o antônimo de Olimpíadas), uma
negra sambando num bar e ainda um trabalhador negro, de calção e sem
camisa, carregando uma geladeira ao mesmo tempo em que dança. É essa a
imagem que o Brasil vende ao mundo: a de um povo tão esculhambado que
não leva a sério nem o trabalho. E, como sempre, cabe ao negro encarnar
esse papel vergonhoso.
Como
se não bastasse tudo isso, entre os negros chamados a representar o
Brasil monocromático do samba está um tal Mr. Catra. Fui pesquisar quem é
o sujeito. Ele se diz convertido ao judaísmo apenas para poder
praticar, sob as leis do país, a poligamia de Fernandinho Beira-Mar,
tendo várias mulheres e mais de 20 filhos, dos quais ele nem sabe o
nome. Suas letras – facilmente encontradas na Internet – colocam as
mulheres muito abaixo das cadelas de rua. Impossível citá-las aqui como
exemplo. Seria como abrir o esgoto. Não creio que alguma corrente do
judaísmo aprove isso. Mas a Prefeitura do Rio, o MEC e os intelectuais
universitários aprovam. Tanto que Mr. Catra é um queridinho da mídia.
Feitores de almas
É
lamentável que se dê espaço tão nobre para esse tipo de negro, como se
ele fosse representativo da cultura afro-brasileira. Os negros legaram
ao Brasil, entre muitas outras coisas, o maior poeta simbolista do país,
que é também o maior escritor de um dos Estados mais brancos – Cruz e
Sousa (1861-1898), de Santa Catarina. Também legaram um dos maiores
músicos eruditos da América Latina, o padre José Maurício Nunes Garcia
(1767-1830), em cuja obra se inspira o próprio Hino Nacional Brasileiro.
E seria preciso escrever um verdadeiro tratado de história e sociologia
do conhecimento para enumerar todos os mulatos – começando por Machado
de Assis, Lima Barreto (1881-1922) e o engenheiro André Rebouças
(1838-1898) – que, em plena escravidão, legaram obras fundamentais ao
país em todas as áreas.
Mas
tanto no clipe das Olímpiadas, quanto nas diretrizes do MEC e nas teses
universitárias, não há lugar para esse tipo de negro altivo, cerebral,
não gregário. Para os racialistas do MEC e da academia, os negros foram
feitos para dançar e sorrir. Não sentem tristeza, não sabem o que é
reflexão, não se permitem ser introspectivos. E andam sempre em bando,
como se não fossem indivíduos, mas reses de algum rebanho. Sua música
jamais seria um blues. É sempre um samba, falando ao corpo, jamais à
alma. Aliás, todas as manifestações culturais tidas como autenticamente
negras pelas universidades – como a capoeira, o hip hop, a roda de
samba, o funk – costumam ter essas duas características: são gregárias e
dançantes, condenando o negro a viver em bando, superficialmente.
Ao
tratar o negro dessa forma, a universidade brasileira age da mesma forma
que os brutais traficantes de escravos. Foram eles que criaram – na
base do açoite – esse negro dançante e sorridente. No livro A Vida dos Escravos do Rio de Janeiro
(Editora Companhia das Letras, 2000), a historiadora norte-americana
Mary Karasch descreve a venda de escravos no Valongo (o grande mercado
de negros da corte) e conta que os comerciantes negreiros, a fim de
convencer os compradores de que suas peças não estavam com “preguiça” ou
depressão, ministravam-lhes estimulantes como pimenta, gengibre e
tabaco. “Um segundo remédio para a nostalgia era ‘estimular’ os
africanos a cantar e dançar a música de suas terras natais”, acrescenta a
historiadora.
“Assim,
o som de tambores e palmas e das canções africanas enquanto os escravos
dançavam contribuía para a atmosfera do Valongo. Se alguns escravos se
recusassem a tomar parte, um feitor forçava-os a dançar, porque
acreditavam que a falta de movimento estimularia a nostalgia e assim
diminuiria seus lucros. Além disso, exigia-se com frequência que os
africanos dançassem de ‘maneira alegre’ durante seu exame físico, a fim
de convencer os compradores de sua saúde excelente. Se expressassem seus
verdadeiros sentimentos ou apatia e depressão eram açoitados”, conta a
historiadora. Felizmente, o negro se libertou daqueles antigos feitores
de corpos; mas precisa se libertar dos atuais feitores de almas – que
tentam anular sua mente, reduzindo seu ser a um corpo que samba.
Publicado no Jornal Opção, de Goiânia.
Ilustrações: Jornal OpçãoJosé Maria e Silva é sociólgo e jornalista.
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